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CAPÍTULO 1 – SUPRESSÃO DE COBERTURA SECURITÁRIA X MOTORISTA SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL: INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO

CAPÍTULO 1 – SUPRESSÃO DE COBERTURA SECURITÁRIA X MOTORISTA SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL: INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO

 

Marcus Frederico B. Fernandes

Advogado em São Paulo

Lucas Renault Cunha

Advogado em São Paulo

 

Remanesce o debate sobre a possibilidade do motorista legitimamente recusar-se a realizar os testes comprobatórios de ingestão de álcool, valendo-se da garantia constitucional do silêncio, que prescreve que ninguém será obrigado a produzir prova contra si mesmo.

A grande crítica é que, em razão desse comportamento legalmente amparado, constitui-se intransponível óbice à essencial atividade de fiscalização do  trânsito, o que coloca a vida de muitos em risco.

No tocante ao contrato de seguro, a questão é igualmente relevante. Isso porque, obrigados contratualmente pelo ressarcimento de danos patrimoniais e de responsabilidade civil no caso de acidentes de trânsito, veem-se os Seguradores à mercê do segurado para a produção da prova sobre a ingestão de álcool pelo condutor do veículo, o que tem profundas implicações contratuais.

No entanto, a questão tem ganho outro contorno e merece uma abordagem no sentido de contemplar-se hipóteses de  inversão do ônus da prova em desfavor do condutor.

Esclareça-se, por oportuno, que, operacionalmente, o seguro é um instrumento de socialização de perdas por meio do qual o indivíduo troca a possibilidade futura de sujeitar-se a uma perda patrimonial, decorrente de eventos inesperados e indesejados, por uma contribuição prévia, certa e determinada – o prêmio.

Em outras palavras, a cada contratação de seguro, um indivíduo delimita a sua perda potencial atinente a um determinado interesse, decorrente de riscos preestabelecidos, celebrando um contrato de seguro e pagando o respectivo prêmio.

Trata-se, portanto, de análise inteiramente permeada de racionalidade econômica e financeira. A consequência direta deste proceder é que o segurado, a partir do momento em que passa a ser titular desta qualificação jurídica (de segurado), incorpora um feixe de garantias a si e a seus interesses, em proteção  à sua incolumidade patrimonial.

No entanto, é possível fazer uma constatação: a garantia patrimonial adquirida com a contratação do seguro implica,  inegavelmente, em uma importante mudança comportamental do segurado quanto à condução de veículos, chegando alguns segurados menos conscienciosos a  flertar com a culpa em suas diversas modalidades.

Queremos com isto dizer que tão só pelo fato de existir um contrato de seguro vigente, a dar proteção face aos riscos advindos de perdas patrimoniais de um determinado matiz, já é suficiente para que o indivíduo deixe de se comportar com a mesma cautela e prudência que assumira no átimo anterior à contratação.

Este é um “risco moral” observado em toda contratação de seguro, que poderia ser definido como a propensão a que o segurado reduza as cautelas  relativas ao interesse segurado, diminuindo os cuidados, ou ainda, aumentando a exposição do bem, situação que inexoravelmente leva a um  aumento da incidência de perdas.

A bem da verdade, a existência de qualquer tipo de garantia, seja ela real ou pessoal, implica também no abrandamento do zelo anteriormente observado. No entanto, se tratando de garantia pessoal, forças de outra natureza, como vínculos familiares ou sociais, impelem em sentido oposto ao relaxamento  apontado e funcionam como contrapeso, compelindo a que se evite a exposição a riscos exagerados, desnecessários ou a perdas consideradas iminentes.

O mesmo não ocorre, todavia, quando a garantia é assumida institucionalmente, como fazem seguradoras e o sistema de seguridade social, por exemplo, em que a perda patrimonial não assolará um indivíduo certo, mas sim uma parcela da coletividade – a massa de segurados e os contribuintes, como citado.

A nosso juízo, os seguros contratados para garantir o indivíduo em face dos riscos advindos da propriedade e uso de veículos automotores estão insertos neste paradigma antes descrito, que demonstra que a simples existência de uma garantia securitária implica na redução da cautela e no aumento da exposição a situações de risco se comparadas às existentes antes da contratação.

Em sentido estrito, este fenômeno é aferido pelas seguradoras em seus departamentos atuariais, passando a compor os cálculos probabilísticos que conduzirão à fixação dos prêmios. Nicolas H. Barbato[1] assim manifesta-se:

La culpa grave es tomada entonces aquí como un dato objetivo (pese a que, en sí, constituye ingrediente de la conducta de un sujeto y, por ello, reviste naturaleza subjetiva), que se evalúa en función de una pauta también objetiva: la “conducta media” del hombre común, por haber sido ese dato el que tomó en cuenta el asegurador cuando estructuró la cobertura y calculó el monto de la prima.

Pero si nos acercamos un poco más al objeto de nuestro análisis, veremos que lo que el asegurador ha tomado en consideración a los fines de ala delimitación de cobertura es la conducta media del hombre común, de un grupo social determinado, concretamente, del grupo social en cual ese seguro deberá desenvolverse.

Mas ainda que a conduta média do homem comum carregue algum grau de descuido, que fatalmente será capturado atuarialmente, incumbe ao segurador, por questões atinentes inclusive à responsabilidade social da empresa, impedir, amparado na Lei e no contrato de seguro, que isto funcione como moto-contínuo, alimentando o aumento da probabilidade e da frequência das perdas observadas naquele grupo social.

Não bastasse este efeito colateral dos contratos de seguro, digamos, intrínseco à relação securitária, posto que acréscimos nas perdas observadas demandarão recolhimentos de prêmios maiores no período subsequente, não se deve olvidar que, no caso específico dos seguros de automóveis, as perdas propagam-se, incluindo as vítimas propriamente consideradas, seus familiares, o sistema previdenciário, a saúde pública, empregadores e, porque não, a sociedade como um todo.

Não seria impertinente acrescentar que, em uma sociedade cada vez mais desprovida de freios éticos e morais, a eliminação (ou redução) da possibilidade de perda material do próprio segurado, através do contrato de seguro, acaba por impeli-lo, decisivamente, a assumir mais e maiores riscos.

Como adrede mencionado, no que diz respeito à condução de veículos automotores, grande parcela destes riscos conscientemente majorados estão umbilicalmente ligados ao consumo de álcool e outras drogas, por serem substâncias que geram relevante alteração comportamental dos motoristas – principalmente quanto à redução da cautela e diligência habituais e, não menos importante, uma relevante perda dos reflexos e demais aptidões físicas essenciais para conduzir veículos.

E sublinhamos que o efeito do álcool no organismo é de notório conhecimento, sendo que as consequências imediatas do seu consumo são certas e determinadas, não se podendo conceber a ausência de discernimento, prévio ao consumo, a respeito.

Como é de conhecimento geral, toda ingestão de álcool  prejudica a capacidade de conduzir veículos, tornando o motorista menos apto a tanto. Apenas para mencionarmos alguns destes efeitos, é inegável que a ingestão de álcool faz com que o cérebro demore mais para processar as imagens, retarde o tempo de reação e reduza a capacidade de visão periférica, além de reforçar a sensação de autoconfiança.

Acrescente-se que, ainda que os efeitos surjam em proporções e velocidades diferentes em cada organismo, seria sofismático imaginar que a ingestão de álcool não torna o condutor menos apto, menos hábil e menos prudente na direção do automóvel.

De outro lado, mas igualmente relevante, é certo que todo consumo de álcool é feito com o deliberado propósito de submeter-se a seus efeitos,  ciente, inclusive, de que isto alterará  a sua própria capacidade de conduzir veículos automotores, distanciando-o da aptidão que tem o “homem comum”, a qual justamente fora utilizada pelo segurador para mensurar riscos e fixar os prêmios.

Em razão disso, a hipótese de se impor à seguradora  perdas patrimoniais decorrentes da condução de veículos automotores sob efeito de álcool,  implicaria, consequentemente, no desequilíbrio da relação econômico-financeira do contrato de seguro, o que fatalmente teria que ser repassado à coletividade – via majoração de prêmios.

Por outro lado, acobertando-se o ato ilícito do segurado de dirigir sob efeito de álcool ao impor ao segurador a assunção dos prejuízos patrimoniais,  tem-se que o funcionamento das garantias securitárias e dos demais instrumentos de socialização das perdas acaba por gerar uma externalidade negativa, consistente na reiteração da assunção de riscos imoderados.

Para que isto não ocorra, transformando-se o contrato de seguro em salvo-conduto para procederes incautos, ampliando as perdas e a litigiosidade, bem agiram os legisladores ao determinar a impossibilidade de cobertura securitária para atos dolosos, além de permitir a adoção de dispositivos contratuais que impeçam a alteração consciente e intencional do risco pelo segurado.

E nem poderia ser diferente, posto que, se assim não fosse, estar-se-ia admitindo que o contrato de seguro de veículos automotores fosse um pacto cuja execução desatenderia o pressuposto insculpido no artigo 421 do Código Civil, que erige a função social como limitador da liberdade contratual.

A imposição de franquias (ou participações obrigatórias), as limitações de importância segurada, a livre fixação dos prêmios, as exclusões de cobertura e o conceito de agravamento de risco são instrumentos de vital importância para que se impeça que o contrato de seguro sirva como incentivo à majoração voluntária de riscos.

A fixação dos prêmios na proporção dos riscos a que exposto o interesse é atribuição inata do segurador, modo de desincentivar os comportamentos socialmente reprováveis, tornando-os mais onerosos do ponto de vista da contratação da garantia, ao passo que se premia a conduta daquele que age com maior cautela, reduzindo a contribuição necessária à obtenção da garantia securitária.

Para o segurado, individualmente considerado, a variação no valor do prêmio dos seguros de automóveis, dada a prática de subtrair ou acrescer bônus na renovação frente à não ocorrência de acidentes de trânsito,  incentiva um comportamento mais cauteloso.

Destaca-se que, por limitações dos bancos de dados dos órgãos gestores do sistema viário nacional, ainda não se logra promover ajustes nos prêmios em função do (péssimo) hábito de conduzir veículos sob a influência de álcool, uma vez que, além da baixa eficácia da fiscalização, é irrisória a incidência de imposição de sanções administrativas;  ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos da América, por exemplo, dado que as infrações apuradas desta natureza (condução sob efeito de álcool) são  registradas no prontuário do condutor, implicando em substancial majoração dos prêmios de seguro.

A estipulação de franquias, do mesmo modo, tem efeito restrito no sentido de moderar a exposição voluntária do segurado a riscos atinentes à condução de veículos sob efeito de álcool, uma vez que já que incide (a franquia) genericamente para qualquer tipo de perda parcial e não é aplicável às hipóteses em que ocorre a perda total do bem, por exemplo.

Diga-se mais. No tocante às apólices de seguro facultativo de responsabilidade civil automobilística, de sua vez, tem-se que elas são emitidas mediante a eleição, pelo segurado, do alcance da cobertura contratada, sendo que é ele o responsável por apontar o limite quantitativo da garantia para a hipótese de danos ao patrimônio ou à incolumidade física de terceiros.

Assim, a existência deste limite poderia ser entendida como um desincentivo à assunção imoderada de riscos, mas de eficácia limitada considerando-se que boa parte dos danos infligidos às vitimas será suportado diretamente por terceiros, principalmente de forma institucional – planos de saúde, empregadores, sistema previdenciário e de saúde pública estatal. Logo, o risco de causar danos a terceiros, superiores às coberturas do seguro de responsabilidade civil, não se mostra suficiente para impor moderação naquilo que apontamos como externalidade negativa do contrato de seguro.

Restam o agravamento do risco e as exclusões de cobertura, ambos consubstanciados em disposições contratuais com expresso respaldo na sistemática legal contemplada pelo Código Civil.

Não se olvide, em um primeiro olhar sobre o assunto, que os contratos de seguro, ainda que celebrados em escala, são dotados de plena força vinculante, aspecto este a respeito do qual é sempre oportuna a lição da lavra do professor Antônio Chaves[2]:

Não há, pois, exagero em dizer que os efeitos do contrato, mesmo os mais distantes e imprevistos, foram “queridos” pelas partes, – acentua Marcel Planiol, Traite Elementaire de Droit Civill Librarie generale, Paris, 10ª ed., 1926, p.343, – “porque as idéias se encadeiam com uma força lógica, e aquele que admite um princípio, aceita, por isso mesmo, as suas consequências. Os efeitos do contrato estão contidos no próprio compromisso.

O agravamento do risco se caracteriza por uma modificação das condições e circunstâncias atinentes ao uso do bem aferidas pelo segurador quando da análise da proposta, prévias, portanto, à celebração do contrato de seguro.

 A respeito, o Professor Pedro Alvim[3] traz duas ponderações que se mostram essenciais. A primeira refere-se à extensão da modificação do risco que deve existir para ser considerada relevante para fins securitários:

Já foi dito que as pequenas modificações do risco são irrelevantes. Somente aquelas que o afetam substancialmente, desfigurando suas características primitivas, assumem importância para o contrato de seguro. A agravação deve ser essencial, isto é, de tal forma que o segurador não aceitaria o negocio, nas mesmas condições, caso ela existisse por ocasião da celebração do contrato. Este critério foi adotado pela legislação francesa e italiana. Em outros países a lei define também o que se deve entender por agravação do risco.

Como retro mencionado, a ingestão de bebida alcoólica é, sempre, ato preordenado com a intenção livre e voluntária de submeter-se a seus efeitos psíquicos e físicos. Afora alguns raríssimos usos em rituais religiosos e para fins medicinais, não nos parece razoável imaginar qualquer outro motivo que não o de, deliberadamente, submeter o organismo aos efeitos do álcool.

O ato de conduzir veículo automotor, ainda mais no atribulado trânsito das cidades brasileiras, exige alto grau de coordenação de movimentos, rapidez nos reflexos e sensatez de raciocínio, comportamentos incompatíveis com a ingestão de bebidas alcoólicas.

Nem haveria de se cogitar, por conseguinte, se a condução de veículo sob influência de álcool constitui ato de “agravação essencial”, para utilizarmos as palavras do ínclito Pedro Alvim. Toda evidência científica, assim como o próprio senso comum, indicam neste sentido.

Relativamente à condução de veículo, não há nível seguro de consumo de álcool; mínimo que seja, afeta a habilidade que o homem comum tem de manejar as dezenas de comandos e as inúmeras decisões quase instantâneas que o trânsito impõe.

Se assim é, certo concluir que a agravação por consumo de álcool é sempre essencial, na medida em que nenhum segurador concordaria em celebrar contrato que cobrisse riscos decorrentes da condução de veículo sob influência desta substância.

Aliás, na mesma linha de raciocínio, acredita-se que tampouco lograria um pai de família definir qual o nível seguro de consumo de álcool por parte de motorista de veículo escolar, por exemplo.

E uma outra ponderação da lavra do eminente Pedro Alvim[4] se faz relevante:

Não se pode negar, todavia, que tanto este critério como o de algumas leis estrangeiras, comportam certo subjetivismo. A modificação do risco poderá parecer sem valor para o segurado e ter, no entanto, gravidade para o segurador que esta em melhores condições de julgar por seus conhecimentos especializados.

Foram razões semelhantes que devem ter induzido a legislação mais recente de alguns países a obrigar o segurador a mencionar no contrato as circunstancias que agravam o risco. (…)

Seria uma enumeração sem caráter taxativo ou exaustivo, por ser impraticável, mas contendo os fatos mais frequentes, de modo que o segurado disponha de elementos objetivos para sua avaliação. Há certas agravações de caráter quase intuitivo. Qualquer pessoa sabe que a instalação de um depósito de inflamável nas proximidades de uma indústria agrava o risco de incêndio ou que a possibilidade de acidente com veículo aumenta, se o motorista ingere bebida alcoólica. Evidentemente que fatos desta natureza não precisam ser enumerados, pois fazem parte da noção comum.

Dito isto, do ponto de vista da probabilidade, a condução de veículo é atividade que implica, necessariamente, na possibilidade de causar danos a si próprio ou a terceiros, sendo que, para evitar suas consequências patrimoniais, há o contrato de seguro. No entanto, como reiteradamente mencionado, a condução de veículo sob influência de álcool implica na alteração das condições físicas e psíquicas do motorista, que leva ao inevitável aumento da probabilidade de produção de dano.

Sobre o tema, ao analisar-se a posição jurisprudencial, constata-se poucas divergências acerca da legalidade da estipulação contratual que exclui da cobertura a condução de veículo sob influência de álcool.

Confirme-se esta assertiva no Acórdão de lavra do Desembargador Luiz Carlos da Mata, do E. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, proferido na Apelação n.º 1.0155.09.025339/6 (001(1)), que não só reconhece a validade da cláusula de exclusão de cobertura para sinistros que envolvam condutores sob efeito de álcool, como também evidencia que  o interesse social deve estar acima do interesse individual do segurado:

Não me parece razoável que tenhamos que interceptar um motorista em estado de EMBRIAGUEZ intolerável para concluirmos que ele não pode conduzir um veículo automotor.

As estatísticas mais recentes nos levam à conclusão que nem mesmo o mínimo de álcool permitido no corpo humano é capaz de garantir reflexo necessário a um motorista para evitar um acidente.

Tenho comigo que é necessário uma interpretação mais rígida no conjunto probatório em casos como o do autos, com o fito de colocar uma pá-de-cal na necessidade ou não da constatação de significante embriaguez do condutor de veículo automotor para a tomada de providências preventivas, evitando-se dessa forma males ainda maiores dos que já temos presenciado em nossas vias públicas.

Veja-se que o trecho do voto retro transcrito acata a constatação de que qualquer quantidade de álcool no organismo humano influencia negativamente os reflexos necessários à condução segura e consciente de veículos automotores, afastando argumento, não poucas vezes utilizado, de que o álcool no sangue deve ser quantificado, a fim de se verificar se aquela dosagem configuraria a hipótese de cometimento de ato ilícito e, consequentemente, da perda do direito à cobertura securitária.

No entanto, as cláusulas dos contratos, em regra e ao contrário do entendimento retro transcrito, não exigem quantificação da dosagem de álcool no sangue, até porque, como é por todos sabido e bem reconhecido no Acórdão de lavra da Desembargadora Suimei Meira Cavalieri, do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, proferido na apelação n.º 2008.001.20950, uma vez provada a ingestão de bebida alcoólica pelo condutor envolvido em um sinistro, presume-se a diminuição dos seus reflexos e aumento do risco que a cláusula contratual citada alhures visava excluir..E mais que presumir as óbvias e notórias consequências da ingestão de bebidas alcoólicas sobre condutores de veículos, o Acórdão em questão aplica, a nosso ver, com absoluta razão, a correta distribuição do ônus probatório, impondo ao segurado a obrigação  de demonstrar a “inalteração dos reflexos, ônus do qual cabe unicamente a ele (o segurado) se desincumbir.

Ou seja, comprovado o sinistro ocorrido com condutor sob efeito de álcool, o ônus probatório de demonstrar que não houve perda de reflexos e aumento de riscos cabe ao segurado, por decorrência lógica de que estes efeitos são consequência direta e natural que se observa naquele que ingere bebida alcoólica, como conclui o referido Acórdão, ao colocar:

Uma vez provado, por  laudo  médico  e  depoimento  pessoal,  que  o  condutor  havia ingerido alguma quantidade de álcool (duas a três cervejas de 600ml), presume-se a diminuição dos seus reflexos e aumento do risco que a cláusula contratual citada alhures visava excluir. Após a prova da ingestão de bebida alcoólica, sem a prova de  sua  quantidade,  somente  um  teste  dos  reflexos  poderia  refutar  a  presunção  de  alteração dos últimos.

Ao autor cabia refutar as alegações, apresentar contraprovas, comprovar que a bebida alcoólica ingerida  (ingestão  confessada  pelo  condutor)  no  decurso  da  madrugada não afetou seus reflexos.  Não conseguiu.

Outro não é o entendimento do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que ao julgar a apelação cível n. 0112829-94.2009.8.26.0005, de lavra do Dr. Antônio Benedito Ribeiro Pinto, frisou a presunção da existência do nexo de causalidade entre a conduta daquele que comprovadamente conduzia automotor sob efeito de álcool e o acidente:

SEGURO DE VEÍCULO – AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS A autora recusou-se a fazer exame de embriaguez no tempo oportuno – Houve ingestão de bebida alcoólica com presunção do agravamento do risco mormente diante das peculiaridades do caso concreto. A pessoa a quem a presunção desfavorece suporta o ônus de demonstrar o contrário, independentemente de sua posição processual, nada importando o fato de ser autor ou réu. Hipótese de excludente de responsabilidade contratual por parte da seguradora – Recurso não provido.

Deste acórdão, extrai-se a explicação que levou o I. Desembargador a entender pela presunção:

É cristalino observar que a autora somente concordou em fazer o exame seis horas depois do fato, pois é comumente sabido que decorrido este tempo o álcool se esvai do corpo. Ainda após tal longo período, a autora apresentava hálito etílico, o que se constata que, de fato, houve ingestão de álcool. Pesa contra ela, portanto, a presunção de que, no momento do acidente, conduzia o veículo segurado em estado de embriaguez. Conquanto relativa juris tantum tal presunção não foi elidida por ela (autora), consoante a regra de julgamento do ônus da prova. (…)

Ora, não há motivo plausível para a colisão do veículo no poste, mormente porque, no horário do referido acidente é comumente sabido que não existe trânsito denso. Motivo este que enaltece a presunção.

E se a cláusula contratual que impõe a subtração da cobertura não encontra grande resistência acerca de sua legalidade, o mesmo não ocorre com  a prova da condução sob efeito do álcool. Inegavelmente, a mais robusta das provas é o exame técnico que quantifica a concentração de álcool no organismo, representado pelo etilômetro (bafômetro) e pelo exame de sangue.

Ambas são de absoluta eficácia para a comprovação, sobrepujando-se às demais pela sua natureza técnica e pela precisão. Em um patamar privilegiado em termos de força probante, coloca-se o exame clínico, que também deve ser considerado como uma prova de natureza técnica, já que realizado por profissionais médicos normalmente vinculados ao Instituto Médico Legal ou a Unidades de Atendimento de Emergências.

Vale dizer que, por intermédio do exame clínico não se quantifica a concentração de álcool no organismo, mas é possível exarar parecer conclusivo sobre a ingestão e constatar, com precisão, alguns dos efeitos físicos e psíquicos que são relevantíssimos no que concerne à aptidão para a condução de veículos.

A mensuração de fatores físicos como o hálito, a motricidade, o equilíbrio, a pulsação, e análise da dilatação da pupila, aliada a fatores comportamentais como o índice de consciência, a memória, agressividade, permitem a produção de prova técnica acerca da ingestão de álcool. Somado a isso, um fator a ser contextualizado ao se analisar as provas técnicas é o tempo decorrido entre a ingestão de bebida e a realização dos exames. Por notórias deficiências materiais dos órgãos administrativos, é comum o transcurso de horas entre uma e outra, de modo que o tempo acaba por ir paulatinamente sanando os efeitos do álcool no organismo, tornando o resultado do exame mais impreciso.

Diante disso, surge a importância da prova testemunhal, que se constitui como um outro meio probatório plenamente acatado pela jurisprudência para a comprovação da ingestão de álcool pelo motorista.

A força probante, no entanto, deve variar de acordo com a profissão ou a experiência das testemunhas, dado que alguns mostram-se mais aptos a discernir o efeito de bebida alcoólica das intercorrências próprias de acidentes de trânsito. Nesta seara encontram-se bombeiros, policiais militares, policiais de trânsito, socorristas dos serviços de emergência e médicos. Confira-se que o próprio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais tem inequívoca decisão neste sentido:

No caso em tela, no Auto de Constatação de EMBRIAGUEZ foi lavrado tendo dois policiais como testemunhas que atestaram que o apelante apresentava os seguintes sinais de EMBRIAGUEZ: face ruborizada, olhos vermelhos, odor de álcool no hálito, dispersão, não sabe onde está, dificuldade no equilíbrio.

Da leitura do depoimento testemunhal do policial Haroldo Santos de Souza, verifica-se que os sinais somente são marcados no auto quando as duas testemunhas os confirmam.

Ademais, o estado de EMBRIAGUEZ do apelante, além de ter sido constatado pelos dois policiais, também o foi pelo Tenente do Corpo de Bombeiros, que levou o recorrente ao Hospital João XXIII, conforme consta nas observações do mencionado auto. Senão, vejamos:

Condutor encaminhado ao Hospital João XXIII, com aparentes lesões, pela viatura do Corpo de Bombeiros de prefixo UR554, comandada pelo tenente Fonseca, que também atestou visualmente sintomas de EMBRIAGUEZ no condutor envolvido. (…)

Nesse esteio, deveria o apelante ter trazido aos autos provas no sentido de desconstituir as afirmações dos três policiais que, apesar de não possuírem conhecimentos da especialidade médica, são mais do que capazes, em razão de sua profissão, de constatarem sinais externos de EMBRIAGUEZ da pessoa que ingere álcool ao ponto de externá-los.” (TJMG Apelação Cível N° 1.0024.08.243280-8/001 – Comarca de Belo Horizonte – Apelante(s): Gustavo Lembi Magalhães – Apelado(a)(s): Sul América Cia Nacional Seguros – Relatora: Exmª. Srª. Desª. Electra Benevides)

No mesmo sentido, decisão que consigna ser fidedigna afirmação feita por Policial Militar em Boletim de Ocorrência, noticiando o estado etílico do condutor de veículo envolvido em acidente:

O boletim de ocorrência assegura que a “autora apresentava sintomas de embriaguez ou de haver feito uso de substâncias tóxicas” e que “a autora se recusou a soprar o bafômetro”. É de se observar que tal tipo de documento, sendo produzido por servidor, goza de fé pública, e, portanto, de presunção relativa de veracidade, só podendo ser desconstituídas as informações nele contidas, através de prova segura, robusta.(…)

É incontroverso o fato de a autora ter se negado a realizar o teste do bafômetro. À autoridade policial só restou, portanto, registrar tal ocorrência, e aferir se a apelante estava embriagada através dos sinais externos apresentados pela mesma. Com base nesses elementos, consignou que a recorrente apresentava sintomas de embriaguez. (…)

O que se pode perceber, de acordo com a análise que se acabou de fazer, é que a autora não foi capaz de fazer qualquer prova hábil a demonstrar a inveracidade das informações constantes do boletim de ocorrência, permanecendo intacta, portanto, a presunção de veracidade deste. Pelo contrário, conforme se demonstrou acima, o conjunto probatório aponta no sentido de que a autora está desprovida de razão.“ (TJMG – Re. Des. Eduardo Mariné da Cunha –  Numeração Única: 3581731-73.2000.8.13.0000, j. 24/04/2002).

Por fim, mas não menos importante, cabe refletir acerca da recorrente hipótese de recusa do condutor à sujeição aos exames, inclusive o clínico e do bafômetro, situação que tem obstado a constatação necessária à aplicação da legislação penal, administrativa e das disposições do contrato de seguro.Nesta hipótese, a interpretação em questão acerca do ônus probatório deve, necessariamente, seguir o entendimento consagrado na Súmula 301 do STJ[5],  que trata da presunção relativa  de paternidade daquele que se recusa a submeter-se ao exame de DNA, admitindo, por evidente, prova em contrário.

Até porque, não se vê outro motivo para a recusa imotivada daquele sobre o qual pende suspeita fundada de encontrar-se sob efeito de álcool, senão o de dificultar tal prova, visando desta recusa obter benefício, seja sob o ponto de vista penal, administrativo ou contratual, como já concluiu o Superior Tribunal de Justiça, em V. Acórdão que serviu de precedente à edição da citada súmula, relatado pelo Min. Carlos Alberto Menezes Direito:

Repita-se, é sabido que a parte não pode ser compelida a realizar o exame de DNA, mas nossos Tribunais têm entendido que a recusa do réu sem motivo convincente se constitui em sério indício de ser ele o pai do investigante, pois a negativa nessas condições só pode ter por finalidade dificultar a prova. (…) a prova dos autos é evidentemente frágil, pois os depoimentos testemunhais são contraditórios, mas a presunção da veracidade dos fatos alegados fica mais nítida com a injustificada recusa do apelante em se submeter o exame de DNA, prova com o índice de confiabilidade de 99,9999%.” (AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 498.398 – MG (2003⁄0002781-4) Relator: Ministro Carlos Alberto Menezes Direito).

E tal presunção, por se caracterizar como relativa, implicará em inversão do ônus probatório em desfavor do segurado, que atrai assim, para si, em razão da recusa, o ônus de comprovar que não se encontrava sob os efeitos da bebida alcoólica ou, ainda que se encontrasse, que o álcool não teve nenhuma influência no acidente.

Este é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme se verifica o julgado que segue, que embora trate da recusa à realização do exame de DNA, é perfeitamente aplicável aos exames de averiguação de ingestão de bebida alcoólica:

Direito civil. Recurso especial. Ação de investigação de paternidade. Exame pericial (teste de DNA). Recusa. Inversão do ônus da prova. Relacionamento amoroso e relacionamento casual. Paternidade reconhecida.

– A recusa do investigado em se submeter ao teste de DNA implica a inversão do ônus da prova e conseqüente presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor.

– Verificada a recusa, o reconhecimento da paternidade decorrerá de outras provas, estas suficientes a demonstrar ou a existência de relacionamento amoroso à época da concepção ou, ao menos, a existência de relacionamento casual, hábito hodierno que parte do simples ‘ficar’, relação fugaz, de apenas um encontro, mas que pode garantir a concepção, dada a forte dissolução que opera entre o envolvimento amoroso e o contato sexual. Recurso especial provido.[6]

Neste diapasão, considerando os aspectos morais envolvidos, justifica-se a inversão dos ônus probatórios em desfavor daquele que se recusa a submeter-se aos exames técnicos, inclusive o do bafômetro, atribuindo para si o ônus de comprovar que não se encontrava sob efeito de bebida alcoólica.

Conclui-se, assim, que nos casos de seguro envolvendo automóveis, é plenamente legal e legítima a exclusão contratual de cobertura securitária para os casos que envolver consumo de bebidas alcoólicas e outras drogas, devendo-se prestigiar a inversão do ônus da prova  sempre que o condutor recusar-se a se se submeter aos exames técnicos, até  em razão da gravidade do assunto e da grande repercussão social dessa questão.

A findar estas considerações, importante consignar as palavras do Professor Michael J Sandel, da Universidade de Harvard: “Apesar de sermos devotados à prosperidade e à liberdade, não podemos absolutamente desconsiderar a natureza judiciosa da justiça. É profunda a convicção de que justiça envolve virtude e escolha: meditar sobre a justiça parece levar-nos inevitavelmente a meditar sobre a melhor maneira de viver”.[7]

 

Referências Bibliográficas

Justiça – O Que é Fazer a Coisa Certa, Michael J. Sandel – Editora Civilização Brasileira – 4ª Edição, 2011, Rio de Janeiro.

Responsabilidade Contratual, Caracterização. Responsabilidade Pré-contratual, Calculo do Ressarcimento, Antônio Chaves, in “Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo”, Volume LXIX – Fascículo I, 1974, pág. 220.

Culpa Grave Y Dolo em el Derecho de Seguros, Nicolas H. Barbato – Editora Depalma –  1ª Edição, 1994, Buenos Aires.

O Contrato de Seguro – Pedro Alvim – Editora Forense – 1ª Edição, 1983,  Rio de Janeiro.

Insurance Contratual Analysis, Wiening, Eric e Malecki, Donald –  1st Edition,  American Institute for Chartered Property Casualty Underwriters.

Buona Fede e Assicurazione, Monti, Alberto – Giuffré Editore, 1994, Milão.

[1] Culpa Grave Y Dolo em el Derecho de Seguros. 1ª Edição, 1994, Ed. Depalma, p. 139.

[2] In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Volume LXIX – Fascículo I, 1974, p. 220, artigo Responsabilidade Contratual, Caracterização. Responsabilidade Pré-contratual, Calculo do Ressarcimento.

[3] In Contrato de Seguro.  Editora Forense, 1ª Edição, 1983, p. 261.

[4] In Contrato de Seguro. Editora Forense, 1ª Edição, 1983, p. 261.

[5] “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”.

[6] REsp 557.365/RO, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/04/2005, DJ 03/10/2005, p. 242.

[7] “Justiça – O que é fazer a coisa certa” – Michael J. Sandel – 4ª Edição – Editora Civilização Brasileira, p. 18.