Em 18.09.2020, foi publicada a Circular SUSEP nº 613, pela qual reclamações de consumidores não mais serão processadas pela SUSEP, mas sim no consumidor.gov.br, plataforma digital oficial da administração pública federal para a autocomposição nas controvérsias em relações de consumo.
Não é uma mudança singela e pontual. Trata-se, na realidade, de mais uma pequena revolução desta Administração da SUSEP, uma elogiável mudança de paradigma na atuação da Autarquia na supervisão do setor de seguros e resseguros.
De fato, o tratamento das reclamações de consumidores passou, no âmbito da SUSEP, por diversas fases.
Até os anos 90, a SUSEP determinava que pagamentos específicos fossem feitos como consequência de reclamações de segurados e beneficiários. Assim foi até o Conselho Nacional de Seguros Privados manifestar entendimento de que cabia à SUSEP somente aplicar penalidades pelo cometimento de irregularidade administrativa.
Com o tempo, no entanto, a SUSEP passou a considerar o suposto descumprimento de obrigação contratual como violação do art. 88 do Decreto-Lei nº 73/1966 e a fazer mediação no encaminhamento de reclamações para as seguradoras.
O tempo passou e, em 2004, a SUSEP orgulhava-se de atingir a satisfação do reclamante em mais de 95% das reclamações de consumidores que mediava.
Contudo, o número aparentemente positivo revelava uma distorção inaceitável: de cada 100 reclamantes, 95 poderiam ter resolvido seus problemas sem acionar o Estado. Ou grande parte desses 95 não tinham pleitos justos, mas as empresas supervisionadas os atenderam assim mesmo, para evitar o processo administrativo na SUSEP.
Independentemente da distorção causada, a SUSEP havia se transformado em serviço de atendimento ao consumidor de seguros, obviamente custeado pela sociedade em geral, numa externalidade claramente evitável, e com danos irreparáveis à imagem e à eficiência do setor.
Outros efeitos colaterais relevantes ocorreram. No início do processo de saneamento dessa situação, foi identificada a prescrição intercorrente de centenas de processos administrativos sancionadores, principalmente relacionados a reclamações. Ou seja, centenas de consumidores foram informados de que suas reclamações geraram processos que ficaram paralisados por mais de três anos e, por isso, foram extintos.
Como se pode notar, não se tratava de um sistema disfuncional, mas sim de uma disfunção setorial transformada em sistema gerido pelo Estado.
Vieram então as ouvidorias, cuja ideia-força era devolver para as seguradoras a obrigação de cuidar de seus clientes e limitar a ação da SUSEP a casos que tivessem efetiva relevância.
A Resolução CNSP nº 110/2004 estabeleceu parâmetros mínimos para ouvidorias das seguradoras. As ouvidorias não eram obrigatórias, mas, atendidos esses parâmetros, trariam o benefício da não abertura de processos administrativos sancionadores pela SUSEP.
Interessante notar que esse é um dos poucos exemplos em que uma norma editada pela SUSEP e pelo CNSP serviu de modelo para o Banco Central.
Além disso, foi estabelecido, na Resolução CNSP nº 60/2001, o benefício da atenuante para qualquer suposta irregularidade para cuja tentativa de solução tivesse atuado uma ouvidoria reconhecida pela SUSEP. Isso teve, de imediato, impacto “psicológico” relevante, já que, nos meses anteriores, em que se pretendeu reduzir o acúmulo de processos, a quantidade de multas aplicadas em decisão final havia alcançado valores sem precedentes.
E veio, em sequência, a Circular SUSEP nº 292/2005, que, depois da primeira “limpeza” acima descrita, estabeleceu que, antes da abertura de um processo administrativo sancionador (PAS), um procedimento de atendimento ao consumidor (PAC) deveria ser instaurado.
Funcionava assim (e assim será até o dia 1º de janeiro de 2021): apresentada uma reclamação, a SUSEP (i) encaminhava, sem exercer qualquer mediação, o pleito à ouvidoria da empresa reclamada e, não atendido o reclamante, abria um PAC. Quando não havia uma ouvidoria reconhecida (possibilidade que deixou de existir posteriormente), o PAC era aberto imediatamente. Em qualquer hipótese, aberto o PAC, já não havia a possibilidade de arquivamento por simples atendimento do pleito do reclamante.
Ou seja, a SUSEP simplesmente deixou de fazer a mediação, sem ter deixado de manter registros sobre a eficiência das seguradoras no tratamento das insatisfações dos seus clientes. Isso tudo integrado ao então novo parâmetro da supervisão baseada em risco, na medida em que a ouvidoria, com sua estrutura e relatórios, passou a integrar a governança das seguradoras.
Obviamente, não se fez isso sem resistência. Seguradoras inicialmente reclamaram da quantidade de multas e da Resolução CNSP nº 110/2004 (lembrando que a ouvidoria não era obrigatória). Corretores sentiram-se desprestigiados. Dentro da SUSEP, foi dito e repetido que a Autarquia estava abandonando os consumidores. Até a Ordem dos Advogados do Brasil, ansiosa por participar, de forma tardia, do FEBEAPÁ1, reclamou de ter seu espaço de atuação (?) ocupado.
Ocorre que os ganhos foram evidentes, mas, como se viu depois, não chegaram perto de suficientes.
PACs e PAS continuaram sendo instaurados para punir seguradoras porque deixaram de pagar indenizações pleiteadas, somente para dar um exemplo triste, por segurados que dirigiam embriagados seus carros. Difícil saber qual é a maior perda. Podemos citar, em lista não exaustiva, a involuntária participação da SUSEP nas estratégias nem sempre legítimas dos segurados, o gasto de dinheiro público e tempo de servidores que emitiam pareceres e decisões em processos que duravam anos e por fim não podiam obrigar seguradoras ao pagamento e multas equivocadamente aplicadas. Enfim, um sistema disfuncional.
Editou-se, então, a Circular SUSEP nº 613/2020, que revogou a Circular SUSEP nº 292/2005, simplesmente extinguindo o procedimento de, em face de uma reclamação, abrir um processo (seja ele um PAC ou um PAS). A partir de 2021, a SUSEP indicará aos potenciais reclamantes o caminho do consumidor.gov.br, a cuja adesão as seguradoras têm sido levadas pela SUSEP.
Trata-se efetivamente de pequena revolução, por meio da qual milhares de processos deixarão de ser instaurados pela SUSEP para tratar de reclamações, sem embargo das ações de supervisão necessárias a partir da análise, pela SUSEP, do conjunto de reclamações apresentadas no portal.
Um ponto que pode ser um problema é a pretensão do portal de tratar de reclamações sem a preocupação central de respeitar e incentivar o bom funcionamento dos sistemas de atendimento ao consumidor das empresas. Em outras palavras, o objetivo do Estado deve ser a eliminação de qualquer espécie de mediação estatal, com as empresas não somente tendo bons sistemas de atendimento como divulgando-os de forma eficiente. E, em certos momentos, o portal parece querer promover a mediação estatal de conflitos, o que parece bom, mas pode ter, como visto, impactos indesejáveis.
Esse, no entanto, é um risco pequeno, que as seguradoras saberão gerenciar. Além disso, teremos o benefício imediato de uma SUSEP mais focada no que realmente importa.
Fica a esperança de a SUSEP dar mais um passo, complementando a Circular SUSEP nº 613/2020. Esse passo é a eliminação da abertura de processos administrativos sancionadores em decorrência de descumprimento irrelevante e pontual de regras, restringindo a aplicação de penalidades a deficiências de controle.
Tome-se o exemplo de uma seguradora com centenas de milhares ou milhões de clientes, centenas de produtos e operações bilionárias, e tenha contra si apuradas duas ou três pequenas falhas operacionais em cada trimestre. Caberia um certificado de bons antecedentes, não a aplicação de uma multa. Ademais, uma postura excessivamente focada na penalização tende a reduzir a busca de transparência das seguradoras perante a SUSEP.
Essa proposta não é nova, mas enfrenta resistências, dentro da própria SUSEP, baseadas na suposta impossibilidade de a SUSEP não penalizar uma irregularidade. Contudo, não se trata de punir ou não punir, mas sim de não investir os escassos recursos públicos na apuração de irregularidades, por meio de processos de centenas de páginas e dezenas de pareceres, irrelevantes e que nenhum problema relevante analisam, ainda mais quando se sabe que uma falha isolada pode ser a prova da eficiência da empresa.
A revisão da Resolução CNSP nº 243/2011, que ocorre nesse momento, seria uma excelente oportunidade para isso.
João Marcelo dos Santos
Sócio do Santos Bevilaqua Advogados, Presidente da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP – e ex-Diretor e Superintendente Substituto da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP.
1 “O Festival de Besteiras que Assola o País”, série de livros de Sergio Porto, editada na década de 60, que contava casos ridículos de medidas e intervenções governamentais e da sociedade em geral, que revelavam quão atrasado e sem sentido podia ser o pensamento de certos setores.